- Barulho? Aqui? Que barulho é esse?
- Mas aqui é um museu!
Europa, anos 10: dois italianos, um pintor e um poeta, sonharam com uma música que cantasse as grandes multidões trabalhadoras, que cantasse o fervor dos arsenais e dos estaleiros iluminados por luas elétricas; que cantasse as estações de trem plenas de serpentes fumegantes; as pontes, os navios a vapor, as locomotivas-cavalos-de-ferro e, também, os aviões e seus motores drapejando ao vento feito aplausos da multidão.
Desse sonho (e seu manifesto). Nasceu le concert bruitist, apresentado, pela primeira vez, em Milão (1914) pelos tais ensandecidos italianos Luigi Russolo e Fellipo Marinetti. Essa “arte do barulho” experimentava realizar, em som, o elogio da máquina, da eletricidade, da velocidade, como já vinham fazendo os futuristas, em prosa e verso, traço e cor.
BRATATATATA!
POW!
VAROOM! WHAAM! ZIING! CRASH! CRAK! BRAT!
GRRRRRRRRR!
I know how you must feel, Brad…
América, anos 60: o nova-iorquino Roy Lichtenstein escandaliza os críticos com imensos painéis de cenas literalmente transladadas das bandes dessinées americanas. Como outros artistas da pop art, Lichtenstein comete a heresia de contaminar a arte (havia dúvidas, afinal, se se tratava de arte) de objetos, temas e técnicas que marcavam a sociedade de consumo. Mimetizando o efeito da reprodução mecânica, e como que “explodindo” a cena desenhada da revista, o artista carrega para suas telas o universo das onomatopéias que decisivamente fazem dos quadrinhos, “quadrinho”.
Sons de fuzil, de balas zunindo, carros arrancando, vidro quebrado, dentes rangendo, e, também, a sensualidade mecânica de uma voz que imaginamos ouvir dizendo: I know how you must feeel, Brad...
Ainda que, em seu projeto de exposição, Benedito Nunes referencie o experimento futurista, e nele se inspire para propor um Barulhismo no Cerrado, não poderia deixar de ver aí, marcas da igualmente transgressora experiência sonora veiculada pelos signos da palavra escrita da pop art de Lichtenstein.
Mas, efetivamente, à parte as influências, referências e inspirações, o barulhismo de Nunes é um outro e surpreendente lance nesse jogo entre sons e imagens.
Podemos dizer que, para os italianos, a questão era menos a invenção de um problema para a arte – a da intersecção ou interpenetração entre sons e imagens – e mais a obsessão em arrancar da poesia, da pintura ou da música a suprema expressão da máquina, o ethos do mundo moderno que ousavam apreciar.
Em Lichtenstein o caso é outro. Não há um gesto hermenêutico, como diria Jameson, que nos remeta a algo mais denso e complexo que a própria obra (a miséria sob as botas de Van Gogh). Ou, dito de outra forma, Lichtenstein não se engajou em nenhuma viagem expressiva profunda, talvez porque (e acredito que assim o seja) a profundidade que buscava era apenas e paradoxalmente, aquela da superfície já antevista por Oscar Wilde.
Nele, POW! É um signo mecânico. Nada a invocar afetos sonoros, mas apenas instalar uma representação que não tem pretensão de ser outra coisa que nãoisso.
ship, thon, thon, phli, phli, chom
phiuaa, phiá, phio, phi
krack, krack, track, trich
heer ere r er heeer
phiio, phioo, phoori, thon
flav, flavh, flap…
Qual é o lance de Nunes? Quais são os seus barulhos? São os do cerrado, inicialmente, como ele próprio anuncia.
A folha áspera da lixeira arranhando outra. Madeira em ponto de fogo, quebradiça e seca, que estala ao vento. Piados de pequenos pássaros, batidas de asas de colhereiros. Vento, raro que seja, que corta o cerrado e deixa a natureza excitada como pouco se vê e ouve. Talvez venha chuva.
Além dos sons muito particulares do concerto de Nunes, o que surpreende é o modo como se inscrevem na cena pictórica. Nada de pontos de exclamação impondo-nos a obrigatoriedade de ler e decodificar o signo assim tão explícito. É mais fácil não ver a palavra, uma vez que a linha (e a cor) da letra se confunde com o traço que define a folha, tronco, nuvem... O som se confunde com a imagem. O signo escrito é abandonado no leito pictórico, prazerosamente. Não há disputa. Paisagem barulhística I e II e também Sobre vôo de colhereiros são os melhores exemplos do experimento que aqui quero destacar.
Mas esse concerto deixa o cerrado e ganha o asfalto. Na cidade, algo se modifica. Exposição de pintura e conversa der bar, conservando certa discrição do signo lingüístico – algumas vezes quase apagado -, instalam o anticoncerto dos sons genuinamente humanos (a palavra falada) em espaços especiais, como contraponto à vastidão sem-homens do cerrado. A letra – natureza humana – sai do espaço camuflado e modula o balanço das cadeiras gelatinosas da cuiabana pocotó. É Maria quem vem lá. Posso ouvir os tamancos cruzando a calçada. Num único gesto, posso adivinhar-lhe a cor, a forma, o som – thoc thoc, thorof, thorof, thoc – sobre a terra, sobre o cimento, sobre a pedra.
Fiquemos enfim com Maria, cuiabana pocotó, em sua magnífica roupa metálica de latas de óleo de soja, Concórdia, Sadia, qualquer que seja. Nada mais justo: depois da lida, o rebolado. Poesia.
Ludmila Brandão
Cuiabá, março de 2006
Sinfônica do Cerrado
Óleo Sobre Tela
70x80cm
2005
Esta exposição individual de Benedito Nunes foi realizada no Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT, e o texto citado acima, pode e deve ser apreciado por quem se interessar em entender melhor esses dois movimentos – o Futurismo e a Arte Pop- e a obra de Benedito Nunes. No referido texto, a professora Ludmila Brandão didaticamente faz uma competente explanação sobre o futurismo italiano de (Luigi Russolo e Filippo Marinetti) e sobre a vertente da pop arte de (Roy Lichtenstein) e ainda interroga: “Qual é o lance de Nunes? Quais são os seus barulhos?” Eis a resposta: “São os do cerrado, inicialmente, como ele próprio anuncia”. Após utilizar de forma diferenciada a figura de linguagem denominada de onomatopéia, no cerrado, Benedito Nunes, na sequencia de sua produção, volta novamente o seu olhar para a cidade, só que agora, de forma muito diferente daquela do início de sua carreira.
Na cidade, algo se modifica. Exposição de Pintura e Conversa de Bar, conservando certa discrição do signo lingüístico – algumas vezes quase apagado -, instalam o anticoncerto dos sons genuinamente humanos, (a palavra falada) em espaços especiais, como contraponto à vastidão sem-homens do cerrado. A letra – natureza humana – sai do espaço camuflado e modula o balanço das cadeiras gelatinosas da cuiabana pocotó. É Maria quem vem lá. Posso ouvir os tamancos cruzando a calçada. Num único gesto, posso adivinhar-lhe a cor, a forma, o som – thoc thoc, thoroc, thorok, thorof, thoc – sobre a terra, o cimento, sobre a pedra.
Fiquemos enfim com a Maria, Cuiabana pocotó, em sua magnífica roupa metálica de latas de óleo de soja, Concórdia, Sadia, qualquer que seja. de (Roy Lichtenstein) e ainda interroga: “Qual é o lance de Nunes? Quais são os seus barulhos?” Eis a resposta: “São os do cerrado, inicialmente, como ele próprio anuncia”.Após utilizar de forma diferenciada a figura de linguagem denominada de onomatopéia, no cerrado, Benedito Nunes, na sequencia de sua produção, volta novamente o seu olhar para a cidade, só que agora, de forma muito diferente daquela do início de sua carreira.
Thoc Thoc
85x61x10cm
Lata recortada dobrada com suporte de madeira
2012
Conversa de Bar
Óleo sobre Tela
80x100cm
2006
Exposição de Pintura (Vernissage)
Óleo sobre Tela
90x120cm
2006
“Tributo ao Mestre do Cerrado: Benedito Nunes” é um projeto selecionado no edital Mestres da Cultura, realizado pelo Governo de Mato Grosso via Secretaria de Estado de Cultura, Esportes e Lazer.
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